Unificação dos
crimes de estupro e atentado violento ao pudor: benesses legais aos criminosos
sexuais ou avanço em prol de direitos femininos?
ALICE BIANCHINI
Doutora em Direito Penal pela PUC./SP
Doutora em Direito Penal pela PUC./SP
Presidente do IPAN.
“Estupradores usam nova lei para reduzir
tempo na prisão.” (FSP, 15.06.10, C1)
A frase acima foi utilizada em manchete de
reportagem que tratava da unificação dos delitos de estupro e atentado violento
ao pudor, estabelecida pela Lei 12.015/09. A preocupação era a situação de réus
que tivessem sido condenados anteriormente à Lei pelos dois crimes (estupro e
atentado violento ao pudor), agora unificados. Por ser mais benéfica, a Lei
deveria retroagir e com isso reduzir o tempo na prisão dos já condenados por
tais crimes? E em que circunstâncias isso poderia acontecer?
Para além da importante discussão jurídica que se
instalou e que ainda está em curso, interessa compreender as razões ideológicas
que levaram à alteração legislativa. Historicamente, a legislação penal
brasileira tratou de punir com mais severidade as condutas que envolvessem
relação sexual. Exemplificativamente pode-se citar a versão originária do
Código Penal em vigor, em que o estupro (que somente se consubstancia com a
relação sexual) era punido com a pena de 3 a 8 anos, enquanto que a reprimenda
do atentado violento ao pudor (atos libidinosos diversos da conjunção carnal)
variava entre 2 a 8 anos. Somente com a entrada em vigor da Lei dos Crimes
Hediondos (Lei 8.072/90) é que as penas de ambos foram equiparadas. Além da
equiparação, as penas sofreram um aumento, passando para os patamares de 6 anos
a 10 anos.
Com o advento da Lei 12.015/09 as condutas passaram
a integrar um único tipo penal (estupro), mantendo-se a sanção penal. Tal
alteração legislativa, embora tenha causado estranhamento em alguns setores,
encontra-se em consonância com os modernos estatutos penais de países europeus.
Foi o que aconteceu na Espanha em 1989, na França em 1994, na Itália em 1996,
na Alemanha em 1997 e em Portugal em 1998.
No Velho Continente, o mote para as mudanças foi a
conquista de direitos femininos. Isto porque não faz mais sentido distinguir
uma grave ofensa à liberdade e à dignidade sexual, pelo único fato de existir
ou não uma relação sexual, já que inúmeras são outras práticas de conotação
sexual tão ou mais ofensivas. A distinção entre o estupro (com relação sexual e
que tinha como vítima exclusivamente a mulher) e o atentado violento ao pudor
(atos libidinosos diversos da conjunção carnal e que atingem qualquer sexo)
somente se justifica se se deixar de levar em consideração o bem jurídico
protegido (liberdade e dignidade sexuais), apelando-se para razões culturais
não mais condizentes com o atual estágio civilizatório: necessidade de maior
proteção da mulher enquanto corpo sexualizado e não enquanto sujeito de
direito.
Aliás, a própria ideia de que o estupro representa
uma violação (que tem como primeiro sentido ofender com violência) já traz, em
si, uma enorme carga sexista. Sem desmerecer o trauma e o drama vivido pelas
mulheres que foram vítimas, não seria mais consentâneo com o projeto social
igualitário pensar no estupro como sexo obrigado, no lugar de lhe carregar de
significados e significantes provenientes da cultura patriarcal? Explico:
tradicionalmente, a violação era havida como um desafio às regras familiares; a
vítima, como depositária da honra do pai ou do marido, não era um sujeito com
vontade substantiva reconhecida em relação à disposição de seu corpo, seus
afetos e desejos. Disso decorria que a principal vítima não era a personalidade
da mulher; a ofensa era contra um corpo que pertencia a alguém (ao pai, ao
marido). O objeto da proteção era a ideia de feminino, não a dignidade da
mulher. Aliás, outra importante alteração decorrente da Lei 10.015/2009 foi ter
substituído o nome do título VI (que abriga o crime de estupro), que antes se
denominava “crimes contra os costumes”, para “crimes contra a dignidade
sexual”.
Uma vez que o próprio teor legal explicita que o
bem jurídico tutelado é a liberdade no exercício da sexualidade, o “objeto” de
ataque não pode ficar circunscrito ao corpo (ou a uma parte dele), senão à
faculdade pessoal de autodeterminar-se neste âmbito de relação interpessoal.
Tal faculdade é atacada, seja por uma relação sexual não consentida pela
mulher, seja por outros atos sexuais também não permitidos pela vítima (homem
ou mulher), justificando que esses últimos ataques (quando de relevo) estejam
previstos em um único tipo penal: o de estupro.
Fonte: http://www.eduardoneiva.jur.adv.br/index.php?p=detalhesPublicacao&codigo=2300. Acessado em 10 de agosto de 2012
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