segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A discriminação de gênero como forma de violação dos direitos humanos: para o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, Lei Maria da Penha é umas das mais avançadas do mundo
 
Alice Bianchini*
Maíra Zapater**

Dentre os muitos avanços representados pela Lei Maria da Penha, talvez o mais significativo seja o estabelecimento definitivo da discriminação e violência de gênero como forma de insulto aos direitos humanos.

Os direitos das mulheres são indissociáveis dos direitos humanos: não há que se falar em garantia universal de direitos sem que as mulheres, enquanto humanas e cidadãs, tenham seus direitos específicos respeitados. Tal afirmação é corolário do princípio da igualdade, que determina não poder a lei fazer qualquer distinção entre indivíduos, o que inclui a distinção entre os sexos ou entre os gêneros.

Não obstante, ao longo dos séculos, ao menos no Ocidente, o condicionamento do corpo biológico a um modelo de comportamento produziu uma série de estereótipos, levando a crenças culturais de que pessoas pertencentes a cada um dos sexos deveriam ocupar lugares sociais pré-determinados: aos homens, o espaço público; à mulher, o espaço doméstico. Essa estereotipagem contribuiu para a discriminação e a intolerância, levando à violação de direitos praticada em razão do gênero, como se verifica em condutas misóginas ou de violência. É nesse contexto de observação histórica de violação dos direitos das mulheres que surge o debate sobre direitos especificamente femininos.

O movimento de mulheres da 2ª metade do século XX (em especial das décadas de 1960 e 1970) vem lutando para que seja desconstruída a ideia de associação entre sexo e gênero, ou seja, para que todas as pessoas, independentemente de seu sexo biológico, possam exercer os mais diversos papeis sociais, respeitando-se suas individualidades e seus direitos.

Ora, para se consubstanciar esse respeito e não se violar o princípio da igualdade mencionado no início deste texto, a lei deve, como é assente, tratar a todos igualmente, enquanto, aos desiguais, deve tratar desigualmente. Em outras palavras, para que a mulher supere o passado histórico de assimetria de poder em relação ao homem e atinja um status de igualdade concreta (e não só na expressão da lei), é necessário um aparato jurídico próprio, sensível às diferenças produzidas culturalmente, e mais, capaz de neutralizá-las.

No caso específico da mulher, a legislação brasileira apresenta longo histórico de discriminação negativa, com diversos exemplos de textos legais, alguns, inclusive, relativamente recentes, que previam expressamente tratamento discriminatório em relação à mulher, a confirmar que contexto social e cultural contribui para reforçar a crença na diferença bem como a intolerância, fazendo-se refletir na norma positivada. Mencionam-se aqui: o Código Civil de 1916 (e que vigorou até 2002), que previa, em seu artigo 219, inciso IV, a possibilidade de o marido anular o casamento caso constatasse que sua esposa havia sido deflorada anteriormente (inexistindo qualquer previsão análoga para a mulher que descobrisse que seu marido já havia mantido relações sexuais antes do casamento); o Código Penal de 1940 (ainda em vigor), que até 2005 trazia o conceito de “mulher honesta”, para identificar aquela cuja conduta moral e sexual fosse considerada irrepreensível, característica (até então) indispensável para assegurar proteção legal contra determinados crimes sexuais. Esse mesmo Código previa (também até 2005) a possibilidade de um estuprador não ser condenado caso a mulher vítima do estupro viesse a se casar com ele após o crime, pois entendia o legislador de então que a punição se tornaria desnecessária em face da “reparação do dano aos costumes”, que era o bem jurídico tutelado pela criminalização do estupro.

Os exemplos mencionados consistem na consolidação legislativa do espírito de uma época, espírito que se tornou insustentável diante dos questionamentos trazidos pela revolução sexual e dos costumes. A profunda modificação das estruturas de pensamento que daí adveio se refletiu na produção legislativa, tornando possível, atualmente, localizar exemplos de discriminação positiva da mulher no ordenamento jurídico brasileiro, como é o caso da Lei Maria da Penha, símbolo da luta do movimento de mulheres pelo reconhecimento de seu direito a uma vida digna e livre da violência como um direito humano fundamental, assegurado na órbita internacional. Além de a Lei Maria da Penha ser produto de um paradigmático caso de litigância internacional de Direitos Humanos, o próprio Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a mulher recentemente a reconheceu como uma das três[1] mais avançadas no mundo, dentre 90 legislações sobre o tema.[2]

Não obstante os avanços comentados, contudo, ainda é relevante o tratamento jurídico diferenciado para homens e mulheres, sobretudo em consequência dos muitos anos de desigualdades materiais e formais. Enfim, o que se espera é que se consubstancie, de fato, a incorporação de novos comportamentos e a construção de outros contextos culturais nos quais seja desnecessária a determinação legal de respeito a direitos, sejam de mulheres, sejam de homens, e em que a dignidade da pessoa não dependa de sexo, gênero ou orientação sexual, mas que decorra, exatamente, da igual condição humana. 



[1] Foram igualmente reconhecidas entre as mais avançadas do mundo as legislações da Espanha e Mongólia, conforme o Relatório da Unifem “Progresso das Mulheres no mundo – 2008/2009”. Íntegra do documento disponível em: http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000395.pdf

[2] Conforme notícia veiculada pela revista Carta Forense. Conteúdo disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/noticias/para-onu-lei-maria-da-penha-e-uma-das-mais-avancadas-do-mundo/5353 

* Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em Direito (UFSC). Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br. Coordenadora do Curso de Especialização em Ciências Penais da Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN – Instituto Panamericano de Política Criminal. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini

** Mestranda em Direitos Humanos (Faculdade de Direito da USP). Graduada em Direito (PUC-SP) e Ciências Sociais (FFLCH-USP). Especialista em Direito Penal (ESMP). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR-FFLCH/USP) e do Instituto LivroeNet. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br//mairazapater/

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